Crônica: um telefonema de IA em 2030

No passado (não tão distante) memorizar números de telefone era quase um rito de passagem. Ligávamos, conversávamos, decidíamos planos, tudo dependia da nossa memória e da capacidade de nos expressar. Cada telefonema era uma pequena atividade intelectual: lembrar do nome da pessoa, conduzir a conversa, encerrar educadamente. Era simples, mas exigia esforço e paciência. Comprar a ficha telefônica, medir cada palavra (3 minutos bastavam para passar toda a informação de semanas ou meses de acontecimentos!) e ter capacidade de síntese em uma ligação fazia parte do processo.

Hoje em dia isso parece história antiga. Os números estão guardados em celulares e dispositivos; falar diretamente tornou-se raro; as conversas se diluem em mensagens curtas, áudios, GIFs e emojis. O toque humano se perdeu em linhas de texto digital. Cada vez menos pessoas se esforçam para lembrar, refletir ou explicar. Hoje, até para ligar, é preciso agendar !!!

Em 2030 cada um terá uma IA pessoal conectada em todos seus dispositivos, sempre pronta para falar, escrever, negociar, explicar e resumir. Não será necessário pensar, basta falar o essencial, ou até nada, que a máquina fará o resto. Imagine a cena: você quer avisar sua prima que hoje não vai visitá-la. Você diz:

"Coisa bôa, fal pa prima tô suss".

A IA da sua prima, sabendo que ela prefere texto do que fala, escreve o seguinte: 

"Prezada prima, bom dia. Espero sinceramente que esteja bem e com saúde nesta data de 15 de março de 2035, às 09:17 da manhã. Venho por meio desta mensagem informar, comunicar e esclarecer que, ao longo do dia de hoje, que compreende o período das 00:00 às 23:59 do dia 15 de março de 2035, decidi, optei e estabeleci como prioridade pessoal dedicar-me a atividades de descanso, repouso, relaxamento, lazer e autocuidado, com o objetivo de preservar meu bem-estar físico, mental e emocional, bem como a minha saúde integral e equilibrada. Em consequência direta dessa decisão deliberada, não pretendo, não planejarei, nem terei qualquer intenção de me deslocar, dirigir-me ou comparecer à sua residência nesta data, tampouco participar de compromissos previamente agendados, marcados ou planejados, sejam eles de caráter social, familiar, recreativo ou de outra natureza. Caso haja necessidade de esclarecimentos adicionais, explicações complementares, informações suplementares ou questionamentos futuros, estarei à disposição, disponível e apto a fornecer respostas, esclarecimentos e detalhamentos em momento posterior, em data, hora e circunstância que sejam convenientes, adequadas ou oportunas. Agradeço antecipadamente, de forma sincera, cordial e reiterada, pela compreensão, atenção, consideração e paciência em relação a esta comunicação. Desejo à senhora um dia ótimo, excelente, satisfatório e pleno de bem-estar, harmonia e tranquilidade. Seu primo." (Ironicamente gerei esta resposta no ChatGPT!).

A prima se desmotiva com a mensagem e pede à IA dela: 

"Resuma para mim a mensagem do meu primo". 

A IA responde: 

"Não vou aí hoje".

É nesse contraste que percebo o paradoxo dos tempos atuais (e futuros): enquanto a tecnologia se encarrega de organizar, explicar e polir cada palavra, a comunicação e raciocínio humanos concebidos verdadeiramente simples e diretos, vão desaparecendo. 

O esforço que antes fazia parte do nosso dia a dia: pensar, memorizar, argumentar, dialogar, calcular e raciocinar, agora está sendo cada vez mais "terceirizado". Estamos entregando às máquinas aquilo que nos tornava capazes de nos conectar, de sentir, de entender uns aos outros e de exercer nossas próprias habilidades intelectuais. 

No fim, bastaria escrever: "Hoje estou de boa na lagoa".